Que o português brasileiro não é a mesma língua falada em Portugal muita gente já aceita. O problema é quando vamos definir que português é esse, diferente do falado em Portugal.
No caso do Brasil, durante muito tempo se falou de um português culto ou padrão e de um português popular. No entanto, a língua portuguesa no país não tem nenhum falar culto ou padrão. O que normalmente é chamado de culto são os falares de uma dada população fenotipicamente mais clara que, sem nenhuma coincidência, é aquela que detém o poder econômico no país.
Não é justo que nós reconheçamos a título de norma culta ou norma padrão os falares daqueles que herdaram privilégio de raça e classe e têm seus saberes linguísticos respeitados à medida que populações multilíngues e multiétnicas, como as africanas e indígenas, sejam apenas lembradas como falantes de um português popular.
Como sabemos, a ideia de língua é atravessada por muitas formas de enxergar a vida. Na maioria delas, temos a proposta de um falar que é mediado por quem tem poder. Em nosso caso, as elites. Para dificultar mais um pouco essa discussão, o Estado brasileiro não só não reconhece a multiplicidade de línguas faladas no país como oficiais, como escolhe uma única variante (a mais aproximada possível dessas populações brancas) como aquela que deve ser usada em certames, comunicações públicas, documentos oficiais e na educação linguística.
Por educação linguística, a partir da ótica do Estado, se entende a transferência de saberes sobre o padrão da gramática da língua, como se tivéssemos somente uma, em que se ignoram os falares que há muito vêm se multiplicando no seio do povo brasileiro.
Um desses falares é o que a antropóloga Lélia González chamava de pretuguês. Para ela, aqueles falares tão observáveis em amplas populações negrodescendentes pelo país eram a prova de que os africanos e seus descendentes não deixaram apenas a marca de seu trabalho no país, mas intensas manifestações linguísticas.
Embora o entorno dessa defesa não faça jus a uma discussão de descrição linguística, é importante dizer que é inegável o status de mudança linguística com a passagem dos africanos no país.
Antes da escravização, os africanos (cujo nome é uma herança colonial) eram de comunidades linguísticas distintas entre si, cujas práticas eram mediadas por um multilinguismo discursivo, isto é, que se compunha de uma função mais discursiva possível e menos imaginativa da ideia de língua.
Duas dessas línguas, segundo sabemos hoje, foram cruciais para a mudança linguística na língua portuguesa: o Kimbundu e o Kikongo. Essas línguas do grupo Bantu passam a modificar não somente o léxico do português brasileiro, mas também a estrutura, a vocalização e a corporificação linguística, ou seja, a maneira como entoamos, interagimos e significamos na língua.
Ainda em 1697, o jesuíta Pedro Dias teria escrito na Bahia o seu livro A Arte da língua de Angola, o que revela que essas línguas não eram apenas retratos particulares de comunicação de um grupo, mas formas carregadas por seus corpos para a comunicação com a dominação colonial e com os colonizadores e escravizadores brancos. Isso revela também que as formas de entender a vida no país passam a ser modificadas por esses falares que se traduzem, a partir daí, em saberes contracoloniais.
São exemplos desses saberes os manifestos das greves negras, como aquele escrito em 1789, em Ilhéus-BA, por escravizados no Engenho de Santana, atual distrito do Rio do Engenho, e na Revolta dos Búzios de 1798, em Salvador, em que escravizados insurgentes distribuíam manifestos ou “papéis revolucionários” em árabe e em português.
Em qualquer um desses casos, fica evidente que a língua portuguesa sempre esteve em disputa nos falares dos povos africanos que, a partir de seus corpos insurgentes, passaram a editar o próprio vernáculo. A exemplo disso, temos palavras oriundas das línguas Bantu como cafuné, caçula, moleque, quitanda, fubá, eventos de harmonização vocálica, como em ad(I)vogado e p(I)neumonia, além de eventos sintáticos, como a dupla negação em eu não vou não.
Embora a provocação que dá título a este texto, a língua portuguesa já está pretoguizada porque os africanos que para cá foram escravizados transmitiram seus valores e sua intelectualidade para a língua do colonizador, modificando não só a língua, mas a própria forma de conceber o que é língua.
Um dos motivos de abordar essa discussão é observar a nossa dificuldade em assumir a legitimidade dos falares dos povos africanos. Em alguns países, o que linguistas e estudiosos chamam de crioulo é uma formação linguística oriunda do contato, mas obtida pela reinvenção dos falares do colonizador em uma unidade linguística “nova”. Muitas vezes, essa unidade não é vista no português brasileiro, em que pese tradições culturais e religiosas reproduzidas e produzidas no país continuem a usar o português junto com línguas africanas para produzir frases como “agô, meu pai” ou palavras como “ajeum”. Dentro do português brasileiro, embora a conformação colonial aqui tenha sido outra, os africanos tiveram diversas estratégias para pretoguizar o português, sendo uma delas a afetiva e corporal de se transmutar para a fala pontual e estratégica, ou seja, contextual, e a de guardar em segredo saberes africanos para os dizer somente no escrutínio das religiões de matriz africana, quando o português é usado como acessório reprodutor dos falares africanos milenares, sendo a posição do crioulo, na verdade, aquela ocupada pela língua portuguesa nesses espaços, e não pelas línguas africanas.
Pretoguizar o português, já pretoguizado, é retornar os saberes ancestrais à valorização dos saberes linguísticos de pessoas pretas ainda vivas, guardadoras de um corpo fenotipicamente e ancestralmente africano. Vivas, essas pessoas continuam a produzir linguisticamente, a resistir na língua, a editar os falares do povo brasileiro.
Gabriel Nascimento é linguista e escritor. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia, é doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade de São Paulo e foi Visiting Scholar pela Universidade da Pensilvânia.