Uma língua de origem africana que surge em território brasileiro e ajuda a entender uma parte de nossa história linguística e cultural
A presença e a influência africana nas mais diferentes camadas da formação histórica da sociedade brasileira são um conhecimento bastante evidente e difundido entre a população. Em geral, todos nos lembramos das raízes africanas de nosso país ao ouvirmos um samba, ao comermos uma feijoada ou um acarajé, ao vermos uma roda de capoeira, dentre outras práticas socioculturais corriqueiras no cotidiano do brasileiro.
Entretanto, a face linguística da história dos africanos e afrodescendentes no Brasil, infelizmente, ainda é pouco conhecida. Na verdade, embora o Brasil possa ser considerado um país multilíngue, devido ao uso de línguas de sinais, de cerca de 180 línguas indígenas e 30 línguas de imigração, muitas pessoas partilham da ideia equivocada de que somos um país monolíngue, no qual todos se comunicam em português. Porém, além de essa concepção desconsiderar parte essencial de nossa realidade linguística contemporânea, ignora também a formação histórica desse cenário sociolinguístico, no qual as línguas faladas pelos povos africanos trazidos à força pela escravidão desempenharam um papel fundamental.
Ao longo dos séculos de escravidão africana, diferentes etnias foram trazidas forçadamente para o Brasil e, com elas, vieram diferentes línguas. Embora haja, em muitos trabalhos, a tese de que o tráfico de escravizados promovia uma mistura entre africanos de diferentes contextos étnicos e linguísticos, visando evitar comunicação entre eles e organização de revoltas, dados científicos indicam que muitos povos vinham de regiões próximas e falavam línguas bastante semelhantes entre si, possibilitando, assim, a interação nas línguas africanas autóctones (isto é, línguas originárias do próprio território africano). Tanto é que a historiografia brasileira registra duas importantes línguas francas africanas faladas no período do Brasil colonial, o quimbundo e a Língua Geral de Mina. Entende-se que eram línguas francas porque eram adotadas quando povos de etnias e línguas distintas se comunicavam.
As variedades mencionadas foram registradas nos seguintes documentos: (i) a Arte da lingoa de Angola (1697), primeira gramática do quimbundo de que se tem notícia, escrita pelo padre jesuíta Pedro Dias durante os seus anos de missão no Brasil; (ii) a Obra nova de lingoa minna, traduzida ao nosso igdioma portuguez (1731), escrita por António da Costa Peixoto, um funcionário público do sistema colonial português que vivia na região de Vila Rica de Ouro Preto; e (iii) Obra nova de lingoa geral de mina, traduzida, ao nosso igdioma (1741), documento igualmente escrito por Costa Peixoto na zona mineradora. Além disso, Nina Rodrigues, em Os africanos no Brasil (1933) – livro póstumo, redigido na última década do século XIX –, registra o uso de algumas variedades africanas na região de Salvador, na Bahia. Tais documentos sugerem que os africanos escravizados e seus descendentes viveram histórias linguísticas no território brasileiro que não necessariamente passaram pelo apagamento instantâneo de suas línguas originais para a adoção do português, mas sim pela manutenção e convivência da língua de origem europeia com as línguas oriundas do outro lado do Atlântico, resultando em relevantes dinâmicas de contato linguístico.
Língua Geral de Mina: língua franca da sociedade colonial?
Se olharmos especificamente para a Obra Nova de Lingoa Geral de Mina (1741), veremos que Costa Peixoto registrou uma variedade linguística em pleno uso na sociedade mineradora daquela época. O documento, composto de vocabulário e diálogos na chamada Língua Geral de Mina (LGM) com traduções para o português, revela interações linguísticas nas mais diversas temáticas da vida social que emergia naquele território, como as relações de trabalho, as relações afetivas, as manifestações de religiosidade e de lazer, bem como os conflitos característicos do período colonial escravista. Como não poderia deixar de ser, os protagonistas dessas interações eram os africanos escravizados oriundos da Costa da Mina, os quais, de acordo com a literatura historiográfica, tinham origem no grupo Gbe e, portanto, apresentavam uma notável homogeneidade étnica e linguística, uma vez que, até os nossos dias, os povos Gbe que se distribuem pelos territórios de Gana, Togo e Benim falam línguas muito próximas, como o gungbe, o fongbe, o ewegbe, variedades estudadas em profundidade por linguistas africanos e falantes nativos de algumas delas, como Enoch Aboh (Benim) e Felix Ameka (Gana).
Por outro lado, há na Obra Nova menções a interações estabelecidas entre os africanos escravizados e os agentes coloniais ou, como diria a historiadora Laura de Mello e Souza (2004), os “desclassificados do ouro”, indivíduos livres e pobres que, na zona mineradora, circulavam por espaços socioeconômicos muito próximos aos dos cativos. Tomando como base o relato de Fernando Araújo (2013), vemos que o próprio Costa Peixoto, autor da Obra Nova, é um exemplo bastante representativo da figura do desclassificado do ouro. A esse respeito, vemos que documentos apontam que tal personagem foi destituído de seu cargo público em 1741, sob a acusação de ser um homem que vivia nas tavernas embebedando-se com os negros e negras, com as quais, aliás, teve três filhos. Os trabalhos dos historiadores que pesquisaram a configuração da sociedade mineradora sugerem que, além de Costa Peixoto, outros indivíduos de perfil semelhante estabeleciam redes de sociabilidade muito próximas dos africanos escravizados. Novamente, o trabalho de Laura de Mello e Souza pode ser evocado, uma vez que os documentos examinados pela historiadora mostram o aumento dos concubinatos (ou seja, uniões conjugais fora do regime jurídico-religioso da época) no período aqui citado, assim como a perseguição colonial às vendas, principais espaços de interação entre os escravizados e os demais desclassificados do ouro, espaços nos quais os integrantes do primeiro grupo tornavam-se “escravos indivíduos”, nas palavras dos historiadores Luciano Figueiredo e Ana Maria Magaldi (1985). Ao que tudo indica, a LGM era uma das variedades linguísticas que intermediavam as interações.
Embora os dois documentos escritos por Costa Peixoto tenham como palco a região de Vila Rica de Ouro Preto, há razões para acreditar que variedades de línguas Gbe eram faladas em outras partes do Brasil, até mesmo no período pós-colonial. O já citado trabalho de Nina Rodrigues (1933), por exemplo, menciona a existência de “dialetos geges” na Bahia do século XIX, isto é, em pleno período republicano e pós-abolição da escravatura. Além disso, a historiadora Mariza de Carvalho Soares, em seu livro Diálogos Makii de Francisco Alves de Souza: manuscrito de uma congregação católica de africanos Mina, 1786 (2019), mostra que os africanos escravizados ligados às irmandades católicas de Santo Elesbão e de Santa Ifigênia, composta de indivíduos oriundos de diferentes nações africanas – sobretudo da Costa da Mina – utilizavam uma língua geral africana para as interações. Resta saber se as variedades linguísticas mencionadas nesses outros trabalhos são semelhantes à LGM registrada por Costa Peixoto, o que daria informações valiosas sobre os movimentos populacionais internos dos povos Gbe e seus impactos na história linguística. Embora a questão ainda esteja aberta, os fatos aqui levantados mostram que, inegavelmente, as variedades linguísticas Gbe foram elementos importantes na ecologia linguística do Brasil colonial, para utilizar o conceito trabalhado pelo linguista congolês Salikoko Mufwene.
A Língua Geral de Mina e sua estrutura
Pelo que vimos até aqui, a LGM parece ter funcionado como uma língua franca da sociedade mineradora. Em outras palavras, ela foi uma variedade linguística utilizada por indivíduos inicialmente falantes de línguas distintas. Esse fato levanta muitas questões para os linguistas, pois, para muitos, quando uma variedade linguística é empregada como língua franca, ela sofre mudanças em sua estrutura gramatical. Esse foi, por exemplo, o posicionamento de estudiosos como o filólogo Edmundo Correia Lopes (1945) e também do linguista Emilio Bonvini (2008), os quais, mesmo separados por um longo período de tempo, convergiram na análise de que a LGM já não era uma língua Gbe tal qual falada nos países que compreendem a antiga Costa da Mina, devido às mudanças estruturais ocasionadas pelo seu uso como segunda língua.
Porém, estudos mais recentes trazem argumentos para sustentar a hipótese de que a LGM preservou muitos dos seus traços de língua do grupo Gbe, características que foram estudadas pelos linguistas Enoch Aboh, James Essegbey e outros parceiros no livro Topics in Kwa Syntax (2010). Além disso, outro livro de Enoch Aboh (2015) indica que as similaridades estruturais entre as línguas Gbe ultrapassam a barreira dos séculos. Nesse trabalho, Aboh comparou a gramática das línguas Gbe modernas – sobretudo o gungbe, língua nativa do autor – com dois documentos antigos dessas línguas: o catecismo La Doctrina Christiana (1658) e o documento La Grammaire Abrégeé (1730), ambos instrumentos linguísticos produzidos durante o período colonial na Costa da Mina. O linguista beninense verificou que, além da notável semelhança entre as palavras modernas e aquelas encontradas nos documentos antigos, as estruturas gramaticais também apresentavam grandes coincidências. Diante disso, a estrutura gramatical da LGM desperta ainda maior interesse, por ser uma variedade Gbe registrada na diáspora americana.
Dentre as várias características gramaticais Gbe que aparecem na LGM, podemos falar, resumidamente, da maneira como são construídos os adjetivos. Diferentemente do português, que tem um sem-número de palavras adjetivais, as línguas Gbe têm adjetivos apenas para indicar tamanhos, cores e formas. Assim, as demais “qualidades” são expressas por palavras que poderiam ser chamadas de “adjetivos verbais”. Elas têm esse nome porque, embora tenham um significado próximo ao de um adjetivo, elas se comportam sintaticamente como verbos. Se fôssemos comparar com o português, é como se em uma frase como “o gosto está forte”, o adjetivo “forte” fosse um verbo, sendo desnecessário, então, o uso do chamado verbo de ligação (verbos que têm a função de ligar o sujeito e suas características, e não indicar uma ação), gerando frases como “o gosto fortou ontem”, ao invés de “o gosto estava forte ontem”. Sendo assim, a LGM apresenta alguns dos seguintes exemplos de adjetivos verbais:
(1) hé nhõ “Está podre”
(2) è clou “É grosso”
(As formas ‘hé’ e ‘è’ equivalem a um pronome de terceira pessoa)
Nos exemplos (1) e (2), vemos apenas formas pronominais de terceira pessoa e os chamados adjetivos verbais, mostrando que eles têm uma semântica de adjetivo, mas atuam como o verbo da oração, estrutura que, no português, teria de ser feita com o predicativo do sujeito, utilizando um verbo de ligação, como em “Isso está podre”, por exemplo. Tanto é que, no português, quando não empregamos o verbo de ligação, transformamos uma oração com sujeito, verbo de ligação e adjetivo em uma sequência com substantivo + adjetivo, como em “gosto forte”, ou seja, um substantivo sendo modificado por um adjetivo. Nas línguas Gbe, por outro lado, quando os adjetivos verbais são utilizados como aquilo que os linguistas chamam de “adjetivos atributivos” – isto é, adjetivos que modificam substantivos –, eles são obrigatoriamente reduplicados, isto é, um ou mais sons da palavra são repetidos. Tal qual ilustram os exemplos (3) e (4), a LGM apresenta essa marca característica da morfossintaxe das línguas Gbe:
(3) lam nhinhoi “carne podre”
(4) abàdecum clouclou “canjica grossa”
Outra característica gramatical bastante interessante das línguas Gbe e que podem ser encontradas na LGM são os chamados verbos de complementação inerente. Bem resumidamente, tais verbos exigem um complemento obrigatório – uma espécie de objeto direto –, mas o significado que resulta na sentença é muito diferente da junção entre os dois. Vejamos alguns exemplos de verbos de complementação inerente que Costa Peixoto (1741) registrou na LGM:
(5) hum du acho susu (du = comer) “Eu devo muito” (Literalmente: “Eu comi muita dívida”)
(6) avò hè cu diu (cu = morrer) “A roupa está suja” (Literalmente: “A roupa, ela morreu sujeira”)
(7) hum je azom (je = cair) “Estou doente” (Literalmente: “Eu caí doença”)
(8) e có du gê (du = comer) “O menino já se batizou” (Literalmente: “Ele já comeu sal”)
O mais interessante nos exemplos de (5) a (8) é verificar que Costa Peixoto (1741) não traduziu as frases literalmente, como se os verbos em questão fossem os mesmos do português, mas reproduziu o comportamento sintático e semântico que eles têm nas línguas Gbe, como mostram os significados das construções. Isso indica que o documentador tinha alguma fluência na LGM, comprovando sua “fama de tradutor”, conforme sugere um texto que abre o documento de 1741.
Seria possível apresentar muitos outros traços gramaticais da LGM. Entretanto, esses poucos exemplos indicam que a referida língua foi uma variedade Gbe falada no Brasil, preservando características das línguas ainda hoje existentes na região da Costa da Mina. Além de manter suas estruturas, há trabalhos que indicam que as línguas Gbe também podem ter contribuído para a emergência de algumas estruturas sintáticas inovadoras do português brasileiro, como, por exemplo, mostra o artigo das linguistas Esmeralda Vailati Negrão e Evani Viotti (2020). Ademais, falando especificamente da LGM, o trabalho pioneiro da etnolinguista Yeda Pessoa de Castro (2002) mostra a presença de estruturas da língua nas cerimônias religiosas afro-brasileiras, desde palavras, construções até formas de fazer referência às entidades espirituais.
É bem verdade que os dados registrados por Costa Peixoto na Obra Nova (1741) também mostram algumas mudanças gramaticais sofridas pela LGM no Brasil, e tal fato é muito natural, uma vez que ela foi uma língua franca africana em um contexto de contato multilinguístico. Assim, o papel dos linguistas que se interessam pelo tema é tentar descrever e explicar as mudanças identificadas, levando sempre em consideração as outras línguas que compunham aquela ecologia de contato, inclusive o português. Porém, com manutenções ou mudanças nos traços linguísticos Gbe, a LGM é um registro importantíssimo da vitalidade das línguas africanas no Brasil e representa um capítulo fundamental de nossa longa e multifacetada história linguística.
Para saber mais
Podcast Babel. Episódio 12 – Língua Geral de Mina. Com a participação autor do texto, Wellington Santos da Silva. Disponível neste link (clique aqui)
Exposição Línguas africanas que fazem o Brasil, no Museu da Língua Portuguesa, em cartaz até fim de janeiro de 2025. O Museu também apresenta conteúdo sobre a Língua Geral de Mina em sua exposição principal.
Autoria
Wellington Santos da Silva é professor adjunto de Língua Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor da tese A Língua Geral de Mina e o Ciclo do Ouro: um capítulo da história dos contatos no Brasil.
Referências
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ABOH, E.O.; ESSEGBEY, J. (eds.). Topics in Kwa Syntax. London: Springer, 2010.
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