Toda história são muitas histórias. Da mesma forma que a história do território que hoje chamamos de Brasil é composta pelas histórias dos povos que nele viviam quando os falantes de língua portuguesa aqui chegaram.
A história de uma língua é inseparável da história de seus falantes, daqueles que a herdaram, modificaram e recriaram ao longo do tempo. A história da língua portuguesa falada no Brasil é profundamente marcada pelo contato com outros povos e culturas, seja dos povos originários que aqui viviam séculos antes, seja dos povos escravizados, bem como daqueles que para cá migraram nos últimos séculos.
Neste segundo arco narrativo (o primeiro pode ser conferido aqui), vamos caminhar pela presença indígena na língua portuguesa apresentada na experiência Português do Brasil, no 2º andar do Museu da Língua Portuguesa.
Quando chegam aqui em 1500, os europeus encaram um mundo completamente novo para suas sociedades, e um dos registros desse espantamento é a famosa Carta de Pero Vaz de Caminha. A carta é considerada a primeira produção literária do Brasil e, ainda que tenha sido escrita com um olhar marcadamente de fora, tem servido de ferramenta para estudar como era a convivência entre os povos do litoral recém-ocupado.
Senhor:
Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães, escreveram a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar minha conta a Vossa Alteza.
“Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Então tornou-se o capitão para baixo, para a boca do rio, onde desembarcamos. E além do rio, andavam muitos deles andando e folgando…”. Acompanhe esse e outros trechos da Carta de Pero Vaz de Caminha lidos pelo músico e escrito Jorge Mautner.
Quando se encontraram pela primeira vez, indígenas e portugueses, numa praia hoje próxima a Porto Seguro, na Bahia, nenhum pôde entender o que o outro falava.
Davi Kopenawa, pensador e escritor, comenta primeiro contato de seu povo com os não indígenas, que ocorreu quando ele era criança. Kopenawa traz, por exemplo, como foram as primeiras interações, das trocas materiais às doenças que foram levadas aos Yanomami por conta desse contato.
Existem diferentes teorias de como os primeiros seres humanos chegaram à América (ou Abya Yala, que na língua do povo Kuna significa “Terra viva”, como é chamado o continente pelos povos originários). Uma teoria é de que houve uma migração vinda do leste da Eurásia pelo Estreito de Bering entre 12 e 15 mil anos atrás. Outra, que os primeiros humanos teriam vindo do continente africano, num momento em que os oceanos estavam mais baixos, há cerca de 20 mil. Ainda que apontem para processos diferentes, é indiscutível que esses povos estavam aqui há muitos séculos antes da chegada dos europeus.
Outro ponto sobre o qual não há consenso é do quanto os portugueses sabiam sobre essas terras antes de navegarem, e quais termos seriam mais adequados para esse processo. Sobre isso, o jornalista e escritor Ailton Krenak comenta no vídeo abaixo que a chegada dos portugueses, para seu povo, só pode ser chamada de invasão. Além disso, conta como as pessoas indígenas resistem cotidianamente à violência e ao preconceito contra seu povo.
Até a metade do século XVIII, o português era língua pouco conhecida da maioria da população do Brasil, basicamente formada por indígenas, negros ou mestiços. Falava-se a língua geral, de base tupi. Essa língua era também o principal instrumento dos jesuítas para catequizar indígenas nas aldeias, missões e escolas. Assim, os portugueses que se transferiam para a América precisavam, no mínimo, tornar-se bilíngues para se comunicar com a população local. Essa situação começou a mudar quando, no ano de 1757, o Marquês de Pombal, ministro do Rei de Portugal, tomou uma série de medidas radicais para restringir a influência da Igreja e controlar a atuação dos missionários da Companhia de Jesus. Expulsou os jesuítas da Colônia, confiscou todos os seus bens e proibiu a utilização das línguas gerais, impondo o uso e o ensino obrigatório do português no Brasil.
DIVERSIDADE LINGUÍSTICA
Ainda hoje existem cerca de 200 línguas indígenas faladas nesse território, o que faz do Brasil o 10º país no ranking da diversidade linguística!
Estima-se que no ano de 1500, quando os europeus começaram a ocupar as terras do que hoje chamamos Brasil, havia nesse território uma população de mais de 5 milhões de pessoas, com mais de 1200 línguas e dialetos (ver Aryon Rodrigues).
Ainda de acordo com o Censo 2010, contamos hoje com 274 línguas e dialetos nativos. A maioria delas pertence a 5 grandes agrupamentos linguísticos: os troncos Tupi e Macro-Gê; as famílias Aruak, Karib e Pano, além de inúmeras famílias menores, bem como línguas isoladas.
Também encontramos em território brasileiro 86 etnias que já não têm mais a língua nativa. Esses grupos estão principalmente na região Nordeste e na região de Santarém, no Pará.
A língua portuguesa falada no Brasil é permeada de termos provenientes das línguas dos povos originários.
Línguas gerais
A língua portuguesa não se tornou de imediato a língua mais falada na nova terra. Às vezes, parece que Cabral chegou aqui em 1500 e em 1501 todo mundo falava português. Na realidade, colonizadores e missionários recém-chegados tiveram que aprender as línguas locais para se comunicar com os indígenas.
Com isso, o tupi antigo tornou-se a língua franca da colônia, ficando mais tarde conhecida como língua geral. Existiram duas versões dela: a língua geral paulista e a língua geral amazônica, também chamada de nheengatu (palavra que significa “língua boa”). A língua geral paulista era falada pelos bandeirantes de São Paulo, que a levaram para Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná. Ela foi extinta no século XVIII, por meio do decreto que expulsou os jesuítas e proibiu o ensino das línguas gerais no país. Não é uma língua mista indígena com a portuguesa, mas sim uma língua indígena com influências do contato com o português.
A outra língua geral que se constituiu no Brasil no período colonial foi a língua geral que nós hoje rotulamos de Amazônica para distinguir da Paulista, que mais recentemente tem sido chamada de nheengatu, uma palavra da própria língua que significa “língua boa”. A Língua Geral Amazônica se constituiu de maneira análoga à Língua Geral Paulista, ou seja, portugueses em contato com indígenas, só que nesse caso com o povo Tupinambá. Os Tupinambá também estavam presentes no Maranhão e no leste do Pará, na região em que foi fundada Belém do Pará. Durante o século 19, parte da população Amazônica era bilíngue, havia quem falava além do nheengatu também o português. Por isso, popularmente produzem-se peças musicais, peças poéticas, cantos combinando as duas línguas. Ainda hoje a língua geral é falada por alguns milhares de pessoas, só que agora predominantemente no Noroeste do Amazonas, no Alto Rio Negro.
(Fala do linguista Aryon Rodrigues, em uma produção do projeto Vídeo nas Aldeias, presente na experiência Português do Brasil do Museu da Língua Portuguesa.)
Imagens do projeto Vídeo nas Aldeias, presente na experiência Português do Brasil do Museu da Língua Portuguesa, em que o linguista Aryon Rodrigues fala sobre as línguas gerais de base tupi | Acervo Aryon Rodrigues.)
DIVERSIDADE CULTURAL
O contato da língua portuguesa com as línguas ameríndias também se revelou trágico e fatal. Em cinco séculos, por meio de escravização, epidemias, guerras, expulsões e genocídios, desapareceram centenas de povos e línguas.
No século XVI, no território que viria a ser o Brasil, estima-se que havia por volta de 1500 povos, que falavam cerca de 1200 línguas diferentes. Segundo o Censo IBGE de 2010, atualmente há cerca de 305 povos indígenas, que somam 896.917 pessoas. Dessas, 324,834 vivem em cidades e 572,083 em áreas rurais, o que corresponde a menos de 0,5% da população total do país.
Portanto, a história do Brasil também é uma história de desapropriação contínua dos povos indígenas. E, apesar de a Constituição de 1988 ter assegurado aos indígenas o direito à terra, seus territórios continuam a sofrer ameaças sem fim.
Na ponta da resistência estão os povos isolados. Em 2018, a Fundação Nacional do Índio (Funai) confirmava a existência de 28 grupos isolados e outras 70 evidências ainda não comprovadas na Amazônia brasileira. Em pleno século XXI, esses povos recusam insistentemente o contato com o mundo não-indígena.
Nota-se, na comparação entre as pinturas antigas e as fotografias recentes, o contraste das representações feitas por europeus em relação aos retratos – mais atuais – das diferentes etnias.
Existem muitas frentes pelas quais se pode promover a valorização e preservação das línguas e culturas indígenas. Parte delas passa por conhecer a história, as culturas, as demandas dos povos indígenas, sempre na chave do respeito à diversidade e aos direitos dos povos originários.
A curadoria do Museu da Língua Portuguesa apresenta diversos conteúdos relacionados ao tema, de modo a explicitar a contribuição fundamental dos indígenas para a formação do povo e cultura brasileiros. E, claro, para a formação do português falado no Brasil.