Os saberes da escultura Nkisi: de força espiritual a entidade espiritual

Conheça mais elementos culturais que chegaram ao Brasil pelas mãos de povos bantu e como se ressignificaram em nosso país 

Trazida ao Brasil pelos africanos sequestrados e escravizados durante a exploração europeia, a escultura Nkisi, que é um elemento da arte e da espiritualidade africana, passa por importantes transformações na sua adaptação ao novo contexto social e cultural.   

Enquanto, no Brasil, Nkisi faz parte das entidades cultuadas no Candomblé Banto ou Candomblé de Angola, no continente africano Nkisi é uma força espiritual, mas não necessariamente religiosa. E explorar as concepções de cada lado do atlântico é fundamental para evitar os equívocos que podem homogeneizar os conhecimentos das religiões afro-brasileiras e as práticas espirituais na África.  

Mas antes de abordar tais concepções, começaremos pela sua origem. De que parte da África vem a escultura Nkisi?   

A escultura tem suas origens, simultaneamente, nas atuais Angola, República do Congo e República Democrática do Congo. No entanto, por se tratar de um objeto da África pré-colonial, é importante ressaltar que Nkisi é de uma época histórica em que essas regiões eram divididas em reinos distintos e alguns desses reinos não equivaliam ao que hoje nomeamos Angola, República do Congo e República Democrática do Congo (RDC).  

Logo, afirmar que um objeto pré-colonial pertence à Angola ou ao Congo é genérico se pensarmos na geografia desse período, e por isso afirmar que pertence a determinado reino pode ser mais específico e esclarecedor, já que um reino poderia englobar mais de um país, principalmente aqueles localizados nas atuais regiões fronteiriças.  

A pesquisadora Mulinda Buganza afirma que a escultura pertence a vários grupos Congos, sendo um deles o povo Woyo. Os Woyos pertenciam ao Reino Ngoyo, localizado no atual enclave de Cabinda, em Angola, região que fica na fronteira entre a República do Congo e a RDC.  

Os saberes sobre Nkisi em África 
Para começar, vale saber que em quicongo o plural dos substantivos é indicado por um prefixo, ou seja, um elemento que vai antes da palavra (diferente do português que usa um -s final para indicar plural), e a forma desse elemento vai depender da classe a que a palavra pertence. No caso de nkisi, o seu plural é minkisi ou mkisi, e não “nkisis”. Em África, os minkisi são objetos aos quais são atribuídas forças sobrenaturais, ou seja, são figuras recipientes das forças espirituais. Quando trazidos à vida pelo Nganga Nkisi, autoridade responsável por manipulá-los, acredita-se que tal força pode identificar as origens das aflições, curar doenças, proteger de males ou até mesmo punir. Porém, não se pode generalizar o modo de ação de Nkisi: eles podem variar de acordo com as crenças de cada grupo Congo.  

Nesse contexto, os minkisi (plural de nkisi) fazem parte das crenças e espiritualidade dos grupos Congos, porém não são exatamente elementos religiosos. A ideia de religião enquanto instituição com membros que professam a mesma fé e se reúnem periodicamente para cultuar divindades é ocidental, então não é um termo aplicável àquela cultura. 

A espiritualidade sempre fez parte dos costumes da África subsaariana, antes mesmo da colonização europeia, e era um caminho para entender os fenômenos da natureza como chuva, seca, entre outros; encontrar a cura para as enfermidades ou entender os poderes ocultos atuando sobre os problemas. Interpretar tais práticas como sendo religiosas, no sentido apresentado acima, é aplicar o modelo colonialista e hegemônico que frequentemente busca reinterpretar as tradições de outros povos para ajustá-las às perspectivas eurocêntricas. 

Mulinda Buganza afirma que para os Woyo, já mencionados aqui como um dos grupos Congo que acreditam na força de Nkisi, entre as diversas razões para adquirir o Nkisi estão: a busca por cura, neste caso busca-se pelos os minkisi terapêuticos; a busca por proteção familiar ou contra ataques externos; a busca por prosperidade financeira e vida longa – ação de responsabilidade de nkisi mbumba   e a busca por reparação de um erro ou por vingança, ações atribuídas aos minkisi imprecatórios.  

Quanto às suas formas de aquisição, a referida pesquisadora explica que os Woyos adquiriam os minkisi por meio de herança familiar, de compra ou por iniciação.  

 

Escultura Nkisi presente no Museu da Língua Portuguesa. Foto: Cristiano Fukuyama.

 

Atualmente, esse importante elemento da arte e espiritualidade africana, assim como muitos outros aspectos da cultura banto, ainda enfrenta preconceito. Frequentemente associado a práticas de feitiçaria, o Nkisi é, de forma equivocada, considerado uma força negativa. Contudo, para diversos grupos Congos, Nkisi é neutro, não sendo bom nem mau, já que tem o poder de ataque, mas também de proteção – vai depender da pessoa que o utiliza.   

Os saberes sobre Nkisi no Brasil 
No contexto brasileiro, a abordagem para Nkisi é um pouco diferente, já que aqui são entidades religiosas que, conforme indicam os estudos, eram cultuadas inicialmente no Quilombo dos Palmares. De acordo com os pesquisadores Ronan Gaia e Alice Vitória, nos dias atuais, os minkisi são cultuados no Candomblé de Angola ou Candomblé Banto.  

Um aspecto interessante sobre eles é que são percebidos como entidades que nunca tiveram vida terrestre, logo, são eles mesmos os próprios elementos da natureza, nesse sentido, nkisi não é a entidade que tem poder sobre a chuva, pois é a própria chuva.  

Os minkisi cultuados no Brasil são: Pambu Njila, Nkosi, Roxi Mukumbe, Ngunzu, Kabila, Mutalambô (Lambaranguange), Gongobira ou Gongobila, Mutakalambô, Katendê, Nzazi, Luangu, Kaviungo/Kavungo, Nsumbu, Hongolo/Angorô (masculino) e Angoroméa (feminino), Kindembu, Kaiangu, Bamburucema Nvula, Matamba, Dandara, Kisimbe, Ndanda Lunda, Kaitumbá/Mikaiá/Kokueto, Nzumbarandá, Nvunji e Lembá Dilê ou Lembarenganga ou Jakatamba ou Nkasuté Lembá ou Gangaiobanda.   

Vale aqui destacar que vários desses nomes, como Matamba, Lunda e Luango, por exemplo, são nomes de regiões que atualmente fazem parte da geografia de Angola, o que reforça a origem angolana de Nkisi.   

Buscamos contextualizar e abordar as diferentes concepções de Nkisi como símbolo que reflete a história, a cultura e as crenças de inúmeros africanos escravizados no Brasil. Considerando que o português brasileiro, a história e a própria cultura do país são profundamente influenciados pelas contribuições africanas, a inclusão da escultura Nkisi na exposição principal do Museu da Língua Portuguesa representa o reconhecimento de tal influência na formação do Brasil e na configuração de suas religiões afro-brasileiras.  

Para saber mais:
Assista ao vídeo sobre a Escultura Nkisi presente na exposição principal do Museu da Língua Portuguesa, parte do projeto Narrativas do Acervo (clique aqui). 

O livro de Yeda Pessoa de Castro, Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras.  

Autoria:
Nádia Carina da Silva Melo José, doutoranda em Linguística na UFSC e pesquisadora no Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa pelo Edital de Pesquisa Línguas Africanas no acervo do MLP.  

Referências bibliográficas:
BUGANZA, M. H. Le Nkisi dans la tradition woyo du Bas-Zaïre. Systèmes de pensée en Afrique noire [on-line], 8 | 1987. p. 201-220. Disponível neste link. Acesso, 14 jun. de 2024.  

 

Translate »
Page Reader Press Enter to Read Page Content Out Loud Press Enter to Pause or Restart Reading Page Content Out Loud Press Enter to Stop Reading Page Content Out Loud Screen Reader Support