A presença africana nas palavras que falamos em português – Um artigo de Wilmihara Benevides S. Alves dos Santos

No cotidiano de todo brasileiro podemos visualizar as marcas que constituíram, a partir do século XVI, a presença dos povos africanos, de origem Banto e Iorubá, no Brasil. Essa presença está nas palavras que falamos, na gestualidade que produzimos e no nosso modo de pronunciar a língua portuguesa falada no Brasil.

Podemos compreender que a entrada de grande número de africanos no Brasil, com suas diferentes culturas e línguas, passou por um processo de adaptação, certo ajuste cultural e linguístico com a assimilação de novas palavras e, consequentemente, a forma como elas orientavam o entendimento da nova realidade vivida em português. Entretanto, também podemos visualizar a presença das palavras africanas nos diferentes espaços da cultura brasileira. Nesta história, as arestas de como a realidade brasileira era significada são alargadas diante das palavras das babás, amas de leite e mucamas, negros e negras que, com seus fazeres e saberes, marcaram a dinâmica da vida privada dos lares brasileiros. No ambiente da vida pública, o conhecimento de ferreiros, marceneiros e quitandeiras edificavam o cotidiano das ruas com suas palavras[1].

O Museu da Língua Portuguesa, ao expor o acervo de palavras africanas que entraram no vocabulário da língua portuguesa, favorecia reconhecer à história a população africana no Brasil como agente da cultura e da língua portuguesa que se desenhava sobre este solo. No setor Palavras Cruzadas do museu, por exemplo, visualizávamos palavras que nos ensinaram a nomear determinados comportamentos, como: bagunça (criar desordem e confusão), lengalenga (realizar uma conversa enganosa), dengo (ser astucioso e sedutor, faceirice), encabular (provocar ou sentir vergonha), xingar (insultar, ofender com palavras), zangado (estar com sentimento de raiva, irritado), zonzo (atordoado, tonto).

Essas são algumas das palavras africanas que continuam vivas a significar comportamentos e relações sociais, outras ganharam o sentido de gíria na língua portuguesa falada no Brasil, como babaca (para dizer bobo), borocoxô (triste), biboca, cafofo ou mocambo (forma de nomear uma casa simples), cafundó (lugar distante), calombo (calo na cabeça), cambada (grupo de pessoas), coroca (velho), fuçar (procurar), fulo (bravo), fuzuê (confusão), sacana (de comportamento duvidoso), molambento (mal-arrumado), tribufu (pessoa feia), urucubaca (uma forma de nomear o estado de falta de sorte), xodó (fazer um carinho)[2].

De uso frequente, as palavras sunga e tanga, por exemplo, deixaram de ser associadas aos trajes africanos e indígenas para compor peças do vestuário masculino e feminino brasileiro, o que sinaliza a mudança de costumes com a apropriação dessas peças e consequentemente das palavras que as nomeiam.

Era visível a surpresa do público do museu em descobrir não apenas as palavras africanas que falamos em português como também a mudança de significado que algumas sofreram. Em sua língua de origem, por exemplo, a palavra beleléu, encontrada na expressão da gíria paulista “ir para o beleléu”, nomeava um local que compreendemos no Brasil por cemitério, e a palavra samba significava um ato de oração. Outros exemplos se somavam a estes na explanação do educador do museu: banguela se referia na origem ao nome de uma etnia africana conhecida como benguelas; macumba era um instrumento musical; a palavra ginga referia-se ao nome de uma rainha de Matamba (região Banto); e quindim, da ideia original de delicadeza, tornou-se um doce feito com ovos, coco e açúcar. Na relação com o público do museu, a história das palavras e seus novos usos eram comentados[3].

A palavra quilombo significa aldeia e agrupamento, mas também pode significar o corpo e o pensamento que não se reconhece como propriedade do outro. O quilombo atualiza-se no corpo, com novos sentidos e significados que circulam nas escolas de samba (como a Vai-Vai), nas casas de candomblé e umbanda, nos bailes black, na produção de uma imprensa negra, numa literatura afro-brasileira e nas congadas festejadas em vários estados brasileiros.

A cultura é algo que está no corpo, nos gestos, na memória, na forma de andar, no contorno das expressões verbais e não verbais, não é possível perdê-la, a mudança de um contexto cultural para outro acompanha adaptações e recriações dadas em palavras, por isso podemos falar num movimento de antropofagia simbólica no lugar de uma simples assimilação de palavras e práticas[4].

As línguas mudam ao acompanharem a história dos seus falantes, essa é a história da língua portuguesa em solo brasileiro, ela também pode adaptar-se às novas relações linguísticas e culturais. No Brasil, a manutenção da estrutura latina da língua portuguesa não a impediu de acolher uma nova sonoridade em relação à sua matriz e incorporar um grande vocabulário de palavras que veio de outras línguas.

Como um detetive que reúne pistas para contar uma história, as palavras africanas expostas no acervo do Museu da Língua Portuguesa compunham o papel de traduzir os sentidos e significados compartilhados na cultura brasileira, uma história nem sempre contada em livros didáticos, mas que carregamos conosco para os diferentes lugares a que podemos ir. A importância da língua portuguesa como um bem museológico se faz nesse ato de contar histórias que não são definidas por nós, mas são praticadas e vividas coletivamente.

Wilmihara Benevides da Silva Alves dos Santos – formada em Ciências Sociais pela UNESP campus de Marília, Mestre em Ciências Sociais pela mesma universidade, doutoranda do programa de pós-graduação em Ciências Sociais pela PUC-SP. Trabalhou no educativo do Museu da Língua Portuguesa de 2006 a 2014. Em 2015 foi articuladora e educadora do projeto Sala Futura, uma parceria do Museu da Língua Portuguesa com o Canal Futura com o objetivo de mobilização comunitária no bairro Luz e Bom Retiro. Hoje atua como educadora e assistente de coordenação do Programa de Inclusão Sociocultural (PISC) do Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca de São Paulo.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Topbooks, 2001.

FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. São Paulo: Global, 2003.

MANIFESTO Antropófago. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo339/manifesto-antropofago>. Acesso em: 2 jan. 2018.

[1] Segundo os estudos do professor Ataliba Teixeira de Castilho, apresentado a educadores do Museu da Língua Portuguesa no curso O Português Brasileiro Desembarca na Estação da Luz” em março de 2012, o português brasileiro foi extensivamente exposto à influência das línguas africanas. Entre 1538 a 1855 foram trazidos dezoito milhões de escravos africanos, sujeitos a um contato mais intenso com a escassa população branca e seis milhões de indígenas. Nesta história, estima-se alto número de palavras africanas que foram incorporadas ao léxico do português brasileiro. De acordo com o site do governo federal são utilizadas 5 mil palavras africanas apenas no Estado da Bahia. Disponível em: <https://www.brasil.gov.br/cultura/2014/11/linguas-africanas-exercem-influencia-direta-no-portugues>. Acesso em: 8 jan. 2018.

[2] Não cabe no escopo deste artigo compreender a história de cada palavra citada, quais delas foram criadas no solo brasileiro e quais vieram do contexto africano, mas apenas ressaltar a forte presença da herança das palavras africanas e que expressam situações de informalidade do uso da língua portuguesa falada no Brasil. Esta pesquisa foi realizada no acervo do Museu da Língua Portuguesa em 2012.

[3]Também é válido lembrar que dez mil vocábulos da família do tupi-guarani entraram na língua portuguesa falada no Brasil. Essas palavras transformaram-se em substantivo próprio indicativo de lugares e pessoas e outras palavras continuam a representar os nomes de vegetais e animais, assim como eram utilizados pelos Tupinambás, e que apenas sofreram a adaptação morfológica e fonética ao entrarem na língua portuguesa.

[4]Retomamos aqui o conceito de antropofagia na forma como foi utilizado no Manifesto Antropófago escrito por Oswald de Andrade e publicado na Revista de Antropofagia por Raul Bopp e Antônio de Alcântara Machado, em 1928. Segundo o Manifesto: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.” De acordo com essa frase, Oswald de Andrade buscou valorizar as trocas culturais, as quais pressupõem experimentar novos sentidos e transgredir costumes vigentes, adaptar e absorver sem submeter à matriz de uma cultura dominante. Neste aspecto as palavras africanas foram deglutidas por vários grupos sociais e marcam a diferença com o português falado em Portugal, por exemplo, o emprego e a popularização das palavras caçula, bunda e marimbondo, entre outras.

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