Filmes africanos e produções cinematográficas que trazem a África como enredo apresentam as línguas do continente africano aos brasileiros
O cinema, desde seu surgimento, tem sido um recurso potente para educar. Não apenas porque permite alcançar um público amplo, mas porque possibilita uma educação sensível e estética. Inúmeras temáticas podem ser abordadas por meio dos filmes, que ao mesmo tempo conseguem dialogar com pessoas de variadas idades e pertencimentos. Os filmes têm o poder de quebrar as hierarquias e de transcender as diferenças.
No que diz respeito às diferenças, elas estão presentes em um país do tamanho do Brasil, expressas pelas diversidades territorial e populacional. A população brasileira contemporânea é resultado de um longo e tenso processo de interação entre vários povos, como os povos africanos que foram arrancados de várias partes de seu continente durante o período escravagista.
Dado que diversos povos africanos contribuíram com a formação da rica cultura brasileira tanto no aspecto material quanto imaterial, podemos destacar, por exemplo, o impacto das línguas africanas no português brasileiro. No entanto, ainda assim as línguas africanas permanecem desconhecidas pela grande maioria das pessoas no Brasil, tanto por sua complexidade como pela grande quantidade delas.
Mas, nos tempos atuais, elas estão mais perto do que se imagina, e podemos acessá-las sobretudo através de filmes africanos ou de produções cinematográficas que trazem a África como enredo e que têm sido cada vez mais acessíveis ao público brasileiro. Em seu artigo “A recepção dos filmes africanos no Brasil”, Bamba (2012) apontou como o público brasileiro tem tido cada vez mais acesso a filmes africanos, assim como a maneira interagir com essas obras. Aqui, falamos de filme africano como uma produção fílmica cujo roteiro e direção são de autoria africana. Além disso, a maior parte do filme deve ser rodado no continente africano, trazendo uma perspectiva local ao longo da narrativa. (Essa questão é abordada na Tese de Doutorado “A África em sala de aulas: viagens a partir do cinema africano”.)
Com efeito, os amantes de filmes africanos podem acessá-los em várias plataformas de streaming. É uma possibilidade de se transportar ao continente africano através de imagens e sons, e aprender sobre várias temáticas africanas. Mas um dos elementos que compõem a particularidade, ou até mesmo o charme dos filmes africanos é o contato que eles possibilitam com algumas línguas do continente.
Conforme a região de origem do filme, ou a temática que ela aborda (no caso de filmes não africanos), diferentes línguas podem ser representadas. Embora o espectador brasileiro assista a filmes na maior parte do tempo na versão dublada em português brasileiro, esse contato com as línguas africanas lhe é possibilitado, pelo menos, através dos nomes dos protagonistas e dos lugares em que a história se passa. Para ilustrar esse fato, vou usar o exemplo de um dos recentes sucessos do cinema.
Trata-se do filme “The Woman King”,* traduzido em português brasileiro como “A Mulher Rei”. Com roteiro da Dana Stevens e dirigido pela Gina Prince Bythewood, o filme estreou no Brasil no dia 22 de setembro de 2022.
O filme, cuja história aconteceu na África, mais especificamente nas terras do antigo reino de Danxome, traz um pedacinho da história desse antigo reino e de suas valentes guerreiras, as Agodjié.
Embora as cenas não tenham sido filmadas na atual cidade de Agbomè (Abomé em português brasileiro), a capital do reino, a obra traz uma presença marcante das práticas culturais do povo Fon. Primeiro, porque apresenta cenas que ilustram a espiritualidade Fon.
Segundo, traz nomes em língua fongbe**. Por exemplo:
- Nawi: pode ser traduzida como “a princesa preta”
- Kpodjitóode ser traduzida como “quem dá luz à pantera”. Isso porque, de acordo com a tradição oral do Danxomè, o ancestral mítico do povo Fon é uma pantera preta.
- Guezo: nome de um dos reis do antigo reino de Danxomè, que reinou de 1818 a 1858.
- Agodjié: Nome das mulheres soldados do exército do antigo reino de Danxomè, pode ser traduzido por “saia do caminho”.
Um terceiro ponto é que o filme colocou o telespectador em contato mais prolongado com a língua fongbe, e dessa vez por meio da trilha sonora. A faixa que mais fez isso foi “Blood of our Sisters” (o sangue de nossas irmãs), cuja letra em fongbe diz:
O Hun nonvi mi tôn lè tôn.
Nâ mì honlon honlon dù dejì,
Mavò mavò tôn.
Mì dì nú mi lo bo yí dedji nú mi.
Em português (tradução minha):
Sangue das nossas irmãs,
Dai-nos potência,
Força e vitória infinita.
Abençoe e receba nossa oferenda.
Essa trilha aparece em uma cena em que as guerreiras estavam a pouco tempo de iniciar uma batalha. E, para isso, estavam realizando as devidas oferendas para se fortalecerem espiritualmente antes de partir para o combate. Um fortalecimento que se dá através de uma oferenda aos ancestrais e invocando a memória daquelas que caíram em campo de batalha.
Outra trilha do filme em língua fongbe dizia:
Hwelo Glete djôn.
Hwelo Glete djôn.
Hwelo Glete djôn, Glete djôn, Glete djôn.
Contrariamente à canção precedente, essa busca exaltar a força e a potência das guerreiras. Ela pode ser traduzida por:
Eis-nos valentes.
Eis-nos valentes.
Eis-nos valentes, valentes, valentes.
Essas duas canções e as cenas às quais foram vinculadas no filme, se de um lado envolveram emocionalmente o telespectador, por outro lhe proporcionaram momentos de fruição de uma língua africana. Língua que, por sinal, participou também da formação do português brasileiro.
Com efeito, os fon, classificados dentro do grupo Jeje no Brasil, junto com os Iorubás e outras etnias vizinhas, participaram tanto da formação do povo brasileiro quanto da rica e diversa cultura brasileira. E a língua portuguesa guarda marcas dessa contribuição que ocorreu também através da Língua Geral de Mina (língua que emerge do contato de línguas gbe na região de Vila Rica-MG no século 18), como o iorubá e o fongbe.
Essas marcas podem ser observadas no Museu da Língua Portuguesa, realizando um mergulho na sua exposição principal. A curadoria do Museu torna evidente algo que foi também mostrado no filme “A Mulher Rei”. Isto é, a ligação entre povos iorubá e fon. Embora o filme tenha ressaltado essa ligação apenas através do seu aspecto conflituoso, ele abre a possibilidade de o telespectador entender os vínculos seculares que podem existir entre os povos africanos que foram trazidos para as Américas.
No Museu de Língua Portuguesa, a experiência “Palavras Cruzadas” da exposição principal mostra como esse vínculo está presente na cultura, tanto nas crenças quanto nas práticas. Tudo isso é mostrado através de palavras em língua iorubá e fongbe que traduzem a profundidade dos vínculos entre África e Brasil, o que ajuda o visitante do museu a conhecer e ampliar sua visão e sua compreensão em torno dos povos africanos e sua presença no Brasil.
A experiência Palavras Cruzadas traz oito totens no total, sendo cada um dedicado a um conjunto de línguas e culturas presentes na formação do português do Brasil. Entre eles, temos o totem “Iorubá e Eve-Fon”, dedicado às línguas dos grupos Iorubá, Eve e Fon, as palavras que traz são muito associadas ao universo ritualístico e religioso. Outro totem é o “Quicongo, Quimbundo e Umbundo”, que se volta ao grupo das principais línguas bantu em contato com o português no Brasil. Em geral, as palavras nele presente são mais do uso cotidiano, comuns em situações corriqueiras.
E se você deseja ver mais filmes africanos, estes são apenas algumas das sugestões possíveis: “Aníkúlákpó” (Kunle Afolayan, 2022), “Aprendiz de mecânico” (Kunle Afolayan, 2019), “Atlantique” (Mati Diop, 2019), “Frontières” (Apolline Traoré, 2017), “Nha Fala” (Flora Gomes, 2003). Alguns deles estão disponíveis em plataforma como a Blackflix.
PARA SABER MAIS
- A exposição “Línguas africanas que fazem o Brasil”, com curadoria do músico e filósofo Tiganá Santana e realização do Museu da Língua Portuguesa. Além das contribuições de diversas línguas africanas para a formação do português brasileiro, a mostra explora outras linguagens não-verbais advindas das culturas africanas ou afro-diaspóricas. Clique aqui para saber mais da exposição.
Autoria
Senakpon Fabrice Fidèle Kpoholo, pesquisador do Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa pelo projeto “Edital de Pesquisa Línguas Africanas no acervo do MLP”. Após sua Licenciatura em Geografia pela Universidade de Abomey-Calavi (República do Benin), país onde nasceu e cresceu, mudou-se para o Brasil em 2012, onde iniciou e concluiu seus estudos de Mestrado e Doutorado em Educação, respectivamente pela UERJ (2014) e pela UFJF (2019). Foi professor substituto na Faculdade de Educação da UFJF e professor temporário na Universidad Naciónal de Ecuador. É empreendedor, casado e pai de 6 filhos.
Referências
BAMBA, M. A Recepção dos filmes africanos no Brasil. In: VII Estudos de Cinema e Audiovisual. São Paulo, SOCINE, 2012.
CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século XVIII. Belo Horizonte, FAPEMIG, 2002.
KPOHOLO, S. F. F. As Áfricas em sala de aulas: viagens a partir do cinema africano. 2019. 202 f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2019.
* Considerando a produção deste filme, eu o enxergo como um filme diaspórico. Embora o roteiro, a direção e a produção não tenham sido de africanos do continente, ele traz uma temática africana real e uma boa presença de língua africana, possibilitando esse contato para o telespectador.
** Um pouco da história do antigo reino do Danxomè e sua ligação com o Brasil pode ser acessada no livro “Um defeito de cor”, da autora brasileira Ana Maria Gonçalves. O livro traz, inclusive, várias palavras em língua fongbe e iorubá, ligadas às práticas culturais desses povos tanto no continente como no Brasil.